Sobre o Óbvio


Este artigo é um plágio. Bem... explico: no mínimo o título o é. Trata-se do mesmo título de um discurso proferido por Darcy Ribeiro na 29a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em julho de 1977. Naquele discurso Darcy Ribeiro abusou de estilo para expor o quanto as "obviedades" da História nos turvam o entendimento e enviesam o nosso julgamento. Quando isso nos é conveniente, claro. 

Em tempo! Aviso aos que se atreverem a ler o texto de Darcy, assim como este, que ambos são escritos em tom irônico e sarcástico. Este aviso    do que é óbvio   , não seria necessário outrora, mas faz-se necessário nos tempos atuais de ultra-sensibilidade: afinal, estamos vivendo a época do "saltar-direto-às-conclusões-sem-sequer-refletir-sobre-o-todo".

Aviso dado, acrescento que escolhi "plagiar" Darcy Ribeiro aqui, primeiro porque aquele discurso foi de uma pungência e de uma elegância que chega a dar frio no espinhaço; segundo, porque ele foi escrito em plena ditadura, na gestão do General Ernesto Geisel. E foi um texto, digamos... subversivo, incômodo, contra o "mainstream". Exatamente o que este artigo pretende ser.

Ora, o que tem a ver a ditadura de 1977 com os tempos atuais? Não é óbvio que estamos vivendo em plena democracia desde o governo Tancredo Neves      digo    , Sarney? Não é óbvio que nossa Constituição Federal estabelece em seu Artigo 5o      o qual é uma cláusula pétrea    , que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza"?; que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"?; que "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"? Que essa mesma Constituição estabelece que esses direitos só podem ser suprimidos em caso de estado de sítio ou estado de defesa? Isso tudo não é óbvio?

Bem... Foi preciso que uma pandemia viesse nos mostrar que esse "óbvio" não é tão óbvio assim. Ou, se o for, é apenas um "óbvio relativo". Foi isso que nos ensinaram os decretos estaduais que na prática suprimiram o caput do artigo 5o da Constituição Federal e seus incisos II e IV, com a devida chancela da nossa Suprema Corte, com o beneplácito da nossa imprensa, e com o silêncio cúmplice de milhões de cidadãos. Afinal, o povo precisa ser ensinado sobre o que óbvio. É óbvio!

Sabe o óbvio decorrente do ordenamento jurídico brasileiro, o qual estabelece que a Constituição Federal está no topo da hierarquia das leis, decretos e normas? Pois é... também fomos ensinados pelos mesmos entes acima que esse "óbvio" é apenas aparente.

E quanto ao "óbvio" de que nunca estivemos em estado de sítio nem estado de defesa desde a promulgação da nossa atual Constituição, e que apenas estivemos em estado de emergência, sendo o mais recente aquele decretado pelo governo federal em 04 de fevereiro de 2020 justamente    e antecipadamente   , em decorrência do vírus SARS-CoV-2? Pois é... não é tão óbvio assim não! As aglomerações de carnaval provaram que a necessidade desse estado de emergência estava longe de ser óbvia.

Ah, mas ainda tem o óbvio de que pessoas foram     sob força coercitiva de polícia    , obrigadas a saírem de parques, praças, praias e outros locais abertos, em função desses decretos estaduais. Algumas     as mais teimosas e aguerridas à querida Constituição    , foram inclusive algemadas em função desses decretos. É um absurdo que existam pessoas que teimem em insistir naquilo que só aparentemente é óbvio!

Posso apostar, sem muito medo de errar, que as mesmas pessoas que relativizam esses óbvios estão convictas deste outro: o de que eu não tenho autoridade alguma para escrever sobre assuntos como ordenamento jurídico, Constituição, e leis. Para usar uma expressão muito em voga entre os jovens: "Quem sou eu na fila do pão?" Ou, para usar outra expressão da moda, "eu não tenho lugar de fala!". De fato, isto é uma obviedade à qual até eu preciso me render! Afinal, a minha ciência é outra, não é a Jurídica. Mas, sendo eu um chato que gosta de incomodar o establishment desafiando as suas "obviedades", invoco aqui o desmoralizado inciso IV do Artigo 5o da Constituição Federal para dar a minha opinião.

E por falar em opinião, tem ainda o "óbvio" de que esse tal inciso IV é meramente relativo.  Foi isso que tão brilhantemente nos ensinou a nossa Suprema Corte com o tal "inquérito das fake news" e as prisões     inclusive de um jornalista     por crime de opinião. Desde o fim da ditadura que o Brasil não assistia à prisão de jornalistas... mas não é tão óbvio que as interpretações precisam evoluir ao sabor das circunstâncias? Claro que é! Ora, é óbvio ululante!

Mas, de todos esses "óbvios", o mais óbvio     pedindo licença para usar um oxímoro     é o gritante silêncio dos justos! Claro! Sem esse silêncio, esses "óbvios" estariam tendo a sua "obviedade" desafiada. Mas o que se viu e se vê é a rendição ao "discurso bonitinho", que se recusa a questionar o Sistema em nome do "politicamente correto". Se existe algo que pode destruir uma nação não são os "óbvios" como os acima, mas é esse silêncio: o silêncio dos justos.

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